21 de março de 2011

Bombas e dilemas sobre a Líbia


A aprovação da resolução 1973 pelo Conselho de Segurança das Nações Unidos, impondo uma zona de exclusão aérea sobre o território líbio, é fruto da história recente. A comunidade internacional foi acusada, nos anos 1990, de inação diante de graves crises, o que levou à morte e expulsão de milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, superpotências agindo isoladamente foram condenadas pelo exagero e despreparo de suas intervenções militares, em grande medida determinadas por interesses políticos e econômicos. Diante de falhas resultantes desses dois caminhos, quando afinal é necessário e recomendável agir?
A criação da ONU, nos anos 1940, não conseguiu resolver dilemas envolvendo os interesses de Estados e indivíduos. A Carta da organização, em seu primeiro artigo, garante o respeito ao "princípio de direitos iguais e autodeterminação dos povos". Já o segundo fala na "igualdade de soberania entre todos os seus membros" e diz que todo país signatário da Carta deve evitar "o uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado". Tudo muito bonito, mas o problema começa quando notamos que "povos" e "Estados" não são a mesma coisa. Há muitos povos convivendo dentro de Estados ou espalhados além de fronteiras. O que fazer quando o desejo de um povo é conflitante com os interesses do país que ele habita? O final do Artigo 2 complica ainda mais o estabelecimento de direitos e deveres, ao dizer que "nada contido nesta presente Carta pode autorizar as Nações Unidas a intervir em assuntos que estão essencialmente dentro da jurisdição de qualquer Estado". Como então garantir ao mesmo tempo os direitos de povos e indivíduos e a integridade política e territorial de um Estado?
A década de 1990 foi marcada por conflitos armados que não envolviam apenas a luta pelo poder, mas a subjugação física e moral de comunidades e indivíduos. Na Argélia, na ex-Iugoslávia ou em Ruanda, foram os cidadãos comuns, incluindo mulheres e crianças, que mais sofreram. Depois do genocídio de quase 1 milhão de tutsis e hutus moderados, em Ruanda, e dos relatos de violência sexual em massa e ataques a civis na Bósnia-Herzegovina, a comunidade internacional foi inundada de criticas. Os mecanismos estabelecidos pela ONU até então não estavam sendo suficientes para proteger populações civis. Tal situação levou ao desenvolvimento de uma nova doutrina. Sem poder legal, a Responsabilidade de Proteger é um conjunto de princípios desenvolvido nos últimos anos e adotado oficialmente pelas Nações Unidas no final da década passada. Segundo eles, a soberania nacional implica deveres, especialmente o de garantir a segurança da sua população. O secretário-geral da ONU, Bank Ki-Moon, associou o novo raciocínio à crise na Líbia ao dizer que o regime de Muamar Khadafi não podia fugir da responsabilidade de proteger sua população. Seu discurso transformou-se em ação com a aprovação da resolução 1973, da qual países como Brasil, Alemanha, China e Índia se abstiveram, mostrando que o caminho adotado está longe de ser uma unanimidade.
A ideia da nova doutrina internacional foi prevenir a ocorrência de genocídios e garantir os mais básicos direitos humanos, mas sua implementação é ainda difícil e polêmica. O mesmo Conselho de Segurança que pressiona Khadafi não se pronunciou contra os militares de Mianmar, por causa dos interesses da China, as inúmeras ações russas na Chechênia, por razões óbvias, ou atos de repressão realizados por aliados de Washington, como o o Uzbequistão. Os membros permanentes do Conselho de Segurança sempre olharão de forma seletiva para crises mundo afora, o que contraria o caráter universalista da Carta das Nações Unidas. Minorias na Rússia, na China ou mesmo na Arábia Saudita, além das vítimas de abusos de tropas americanas no Iraque ou no Afeganistão, têm muito pouca, ou quase nenhuma, chance de receber apoio internacional. Além disso, os governos terão de avaliar as possíveis consequências da possível adoção de uma ação militar. No caso do Iraque, a intervenção, realizada sem autorização explícita da ONU, e a consequente ocupação americana foram um desastre. Em Kosovo, os ataques da Otan, também sem aval das Nações Unidas, levaram à divisão territorial da Sérvia. O que acontecerá com a Líbia? Mesmo que os ataques ocidentais consigam proteger a população do leste do país, qual será o resultado a médio e longo prazos? Se Khadafi for derrubado, poderá o país ser pacificado ou sofrerá o mesmo destino da Iugoslávia, que não resistiu às diferenças internas? Isso será bom ou ruim para a região? Poderão grupos radicais, como a Al-Qaeda, que atua não muito longe dali, se aproveitar do agravamento do conflito? Além de bombas, há inúmeros dilemas no caminho da Líbia.

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